Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão Michel Foucault ( Resumo e Fichamento)





Título da Obra: Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão
Autor: Michel Foucault
Editor: Vozes
Tradução: Raquel Ramalhete
Lugar: Petrópolis-RJ
Data: 2014
Seção do livro: Primeira Parte: Suplício / Terceira Parte: Disciplina
Resumo: Nos trechos da obra que abordamos em sala de aula, refletimos sobre o poder em Foucault. O autor se opõe a visão de um poder emanente, que um centro é o proprietário do poder. O poder em Foucault é positivo no sentido que ele permeia toda a sociedade, todos os corpos, ele produz coisas e induz ao prazer, produz saber, produz discurso, sendo assim ele é considerado uma rede produtiva e não uma instância repressora. Este forma de poder surge no final do século XVII e XVIII, como um desbloqueio tecnológico do poder, esse poder tem seu caráter na continuidade, na ininterrupção, na adaptação e na individualização em todo o corpo social.
Foucault estuda o poder em seu caráter discursivo e não discursivo, por sua vez nos capítulos que estudamos Foucault faz referências a acontecimentos históricos para demonstrar a transformação que houve no controle do corpo. Mostrando que não vivemos mais numa sociedade do espetáculo porem em uma sociedade da vigilância, no Panopstimo,o qual temos a certeza que sempre podemos estar sendo vigiados apesar de não podemos verificar se realmente estamos sendo vigiados. A disciplina como controle do corpo no espaço e no tempo, na tentativa de ser o mais eficaz possível dentro desses elementos, tornando o individuo economicamente útil e politicamente obediente. A Biopolítica de Foucault se preocupa com os detalhes da vida dos indivíduos antes tidas como no âmbito da vida privada, o poder agora se interessa na higiene da população, no controle da natalidade, na longetividade, das enfermidades edêmicas e etc.
Fichamento:
Primeira Parte: Suplício
Capítulo I – O corpo dos condenados

“[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.”(pág. 9)

“Apresentamos exemplo de suplício e de utilização do tempo. Eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinqüentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal. Menos de um século medeia entre ambos. É a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos “modernos”: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, uma era nova.” (pág. 13)

“Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos suplícios. Hoje existe a tendência a desconsiderá-lo; talvez, em seu tempo, tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com exagerada ênfase como “humanização” que autorizava a não analisá-lo. De qualquer forma, qual é sua importância, comparando-o às grandes transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, com regras unificadas de procedimento; o júri adotado quase em toda parte, a definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e essa tendência que se vem acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos culpados? Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal. No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. Nessa transformação, misturaram-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração.”(pág.13)

“A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força, mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor.”(pág. 14 e 15)

“. É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe. A execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena. É um caso típico na França que a administração das prisões por muito tempo ficou sob a dependência do ministério do Interior, e a dos trabalhos forçados sob o controle da Marinha e das Colônias. E acima dessa distribuição dos papéis se realiza a negação teórica: o essencial da pena que nós, juizes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, “curar”; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação do mal, e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores. Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir, que nem sempre exclui o zelo; ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral.”(pág. 15)


“Mas, de modo geral, as práticas punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação — que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos — são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo.”(pág. 16)

“O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva.” (pág. 16)
“Os rituais modernos da execução capital dão testemunho desse duplo processo — supressão do espetáculo, anulação da dor.” (pág.17)

Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848.” (pág. 19)

“A redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de 1760- 1840, mas que não chegou ao termo. E podemos dizer que a prática da tortura se fixou por muito tempo — e ainda continua — no sistema penal francês. A guilhotina, a máquina das mortes rápidas e discretas, marcou, na França, nova ética da morte legal. Mas a Revolução logo a revestiu de um grandioso rito teatral. Durante anos, deu espetáculos. Foi necessário deslocá-la para a barreira de SaintJacques; substituir a carroça por uma carruagem fechada; empurrar, rapidamente, o condenado do furgão para o estrado; organizar execuções apressadas e em horas tardias; finalmente, colocá-la no interior das prisões e torná-la inacessível ao público (depois da execução de Weidmann, em 1939); bloquear as ruas que davam acesso à prisão onde estava oculto o cadafalso e onde a execução se passava em segredo (execuções de Buffet e Bontemps, em Santé, em 1972); processar as testemunhas que relatavam o ocorrido para que a execução deixasse de ser um espetáculo e permanecesse um estranho segredo entre a justiça e o condenado. Basta evocar tantas precauções para verificar-se que a morte penal permanece, hoje ainda, uma cena que, com inteira justiça, é preciso proibir.” (pág.20)

“Permanece, por conseguinte, um fundo “supliciante” nos modernos mecanismos da justiça criminal — fundo que não está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do incorporal. ”(pág. 21)

“O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e “humanidade”. Na verdade, tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva. Redução de intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente.

Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo: Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo. ”(pág.21)

A relativa estabilidade da lei obrigou um jogo de substituições sutis e rápidas. Sob o nome de crimes c delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo Código. Porém julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos.” (pág.22)

“Faz 150 ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidade, e desde então os juizes, pouco a pouco, mas por um processo que remonta bem longe no tempo, começaram a julgar coisa diferente além dos crimes; a “alma” dos criminosos.” (pág.23)
“A possibilidade de invocar a loucura excluía, pois, a qualificação de um ato como crime: na alegação de o autor ter ficado louco, não era a gravidade de seu gesto que se modificava, nem a sua pena que devia ser atenuada: mas o próprio crime desaparecia. Impossível, pois, declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco; o diagnóstico de loucura uma vez declarado não podia ser integrado no juízo; ele interrompia o processo e retirava o poder da justiça sobre o autor do ato. Não apenas o exame do criminoso suspeito de demência, mas também os próprios efeitos desse exame deviam ser exteriores e anteriores à sentença.” (pág. 24)

“E ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; que uns. depois das sentenças, só têm o direito de fazer executar uma pena fixada pelo tribunal, e principalmente que outros — os peritos — não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento, mas para esclarecer a decisão dos juízes.” (pág.25)

“Todo o aparelho que se desenvolveu há anos, em tomo da aplicação das penas e de seu ajustamento aos indivíduos, desmultiplica as instâncias da decisão judiciária, prolongando-a muito além da sentença.” (pág.25)

“Resumindo: desde que funciona o novo sistema penal — o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX — um processo global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são as dos juizes da infração. A operação penal inteira carregou-se de elementos e personagens extrajurídicos. Pode-se dizer que não há nisso nada de extraordinário, que é do destino do direito absorver pouco a pouco elementos que lhe são estranhos. Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito poder de punir; é, ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga: Naturalmente, damos um veredicto, mas ainda que reclamado por um crime, vocês bem podem ver que para nós funciona como uma maneira de tratar um criminoso; punimos, mas é um modo de dizer que queremos obter a cura.”(pág.26)

“A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referência a outra coisa que não é ela mesma, por essa incessante reinscrição nos sistemas não jurídicos. Ela está votada a essa requalificação pelo saber.
 Sob a suavidade ampliada dos castigos, podemos então verificar um deslocamento de seu ponto de aplicação; e através desse deslocamento, todo um campo de objetos recentes, todo um novo regime da verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no exercício da justiça criminal. Um saber, técnicas, discursos “científicos” se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir.
 Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade.”(pág.26)


“O presente estudo obedece a quatro regras gerais: 1) Não centrar o estudo dos mecanismos punitivos unicamente em seus efeitos “repressivos”, só em seu aspecto de “sanção”, mas recolocá-los na série completa dos efeitos positivos que eles podem induzir, mesmo se à primeira vista são marginais. Conseqüentemente, tomar a punição como uma função social complexa. 2) Analisar os métodos punitivos não como simples conseqüências de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais; mas como técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder. Adotar em relação aos castigos a perspectiva da tática política. 3) Em lugar de tratar a história do direito penal e a das ciências humanas como duas séries separadas cujo encontro teria sobre uma ou outra, ou sobre as duas talvez, um efeito, digamos, perturbador ou útil, verificar se não há uma matriz comum e se as duas não se originam de um processo de formação “epistemológicojurídico”; em resumo, colocar a tecnologia do poder no princípio tanto da humanização da penalidade quanto do conhecimento do homem. 4) Verificar se esta entrada da alma no palco da justiça penal, e com ela a inserção na prática judiciária de todo um saber “científico”, não é o efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas relações de poder. Em suma, tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto. De maneira que, pela análise da suavidade penal como técnica de poder, poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal; e de que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status “científico”(pág.27)

“Analisar antes os “sistemas punitivos concretos”, estudá-los como fenômenos sociais que não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas fundamentais; recolocá-los em seu campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento; mostrar que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos “negativos” que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar (e nesse sentido, se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções)” (pág.28)

“Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.”(pág.29)

“Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. Essa tecnologia é difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõe-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza um material e processos sem relação entre si. O mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso seria impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho do Estado. Estes recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em seus mecanismos e efeitos, se situa num nível completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças.”(pág.30)

“Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e através deles; apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança. O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos, a forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade (realmente elas se articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas engrenagens), não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e de modalidade. Finalmente, não são unívocas; definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças. A derrubada desses “micropoderes” não obedece portanto à lei do tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições; em compensação nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra.”(pág.30 e 31)

“Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em redação ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento. Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se renuncie — no que se refere ao poder — à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do contrato ou ao da conquista; no que se refere ao saber, que se renuncie à oposição do que é “interessado” e do que é “desinteressado”, ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito.”(pág.31)

A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da “alma” moderna.”(pág.32)

“De fato, tratava-se realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos: como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX. O que provocou esses discursos e essas revoltas, essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas, essas ínfimas coisas materiais. Quem quiser tem toda liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas. Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” — a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras — não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos.” (pág. 33 e 34)


Terceira Parte – Disciplina
Capítulo I
Os Corpos Dóceis

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. “O Homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios. Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (pág.134)

“O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação” (pág.135)

“O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. ”(pág.135)

“Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova “microfísica” do poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro.”(pág.136)

“A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito.” (pág.138)

O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartirÉ preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.” (pág.140)

“Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento individualizante se complica. Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos “postos”.” (pág.142)

“Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares, a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais. Sob a divisão do processo de produção ao mesmo tempo que ela, encontramos, no nascimento da grande indústria, a decomposição individualizante da força de trabalho; as repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra. 4) Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações.”(pág.143)

“A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por intervalos alinhados. A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensa.” (pág.144)

“As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. A constituição de “quadros” foi um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arrumar jardins de plantas e de animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de enriquecimento; inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constituir um registro geral e permanente das forças armadas; repartir os doentes, dividir com cuidado e espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças: outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes — distribuição e análise, controle e inteligibilidade — são solidários. O quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma “ordem”.”(pág.145)

“Tática, ordenamento espacial dos homens; taxinomia, espaço disciplinar dos seres naturais; quadro econômico, movimento regulamentado das riquezas.” (pág.146)

Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do caráter à categoria, a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo. Ela permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar “celular”.”(pág.146)

“Durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de disciplinas: eram os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares. Mas esses processos de regularização temporal que elas herdam as disciplinas os modificam. Afinando-os primeiro. Começa-se a contar por quartos de hora, minutos e segundos. No exército, é claro: Guibert mandou proceder sistematicamente a cronometragens de tiro de que Vauban tivera a idéia. Nas escolas elementares, a divisão do tempo torna-se cada vez mais esmiuçante; as atividades são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente:
À última pancada do relógio, um aluno baterá o sino, e, ao primeiro toque, todos os alunos se porão de joelhos, com os braços cruzados e os olhos baixos. Terminada a oração, o professor dará um sinal para os alunos se levantarem, um segundo para saudarem Cristo, e o terceiro para se sentarem.”(pág.147)

“Mas procura-se também garantir a qualidade do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo o que possa perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil.” (pág.148)

“O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. Mas não é isso o mais novo. Outros modos de proceder são mais característicos das disciplinas.”(pág.148)

“O ato é decomposto em seus elementos; é definida a posição do corpo, dos membros, das articulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma amplitude, uma duração; é prescrita sua ordem de sucessão. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder.” (pág.149)

“o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica — uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador.” (pág.149)

“Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente.”(pág.150)

“Sobre toda a superfície de contato entre o corpo e o objeto que o manipula, o poder vem se introduzir, amarra-os um ao outro. Constitui um complexo corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-máquina. Estamos inteiramente longe daquelas formas de sujeição que só pediam ao corpo sinais ou produtos, formas de expressão ou o resultado de um trabalho. A regulamentação imposta pelo poder é ao mesmo tempo a lei de construção da operação. E assim aparece esse caráter do poder disciplinar: tem uma função menos de retirada que de síntese, menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção.”(pág.151)
“princípio da não-ociosidade; é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens; o horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo — erro moral e desonestidade econômica. Já a disciplina organiza uma economia positiva; coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo: mais exaustão que emprego; importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis. O que significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos, por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência.” (pág.151)

“O corpo, do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas operações, opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo. O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e “celular”, mas também natural e “orgânica”.”(pág. 153)

“As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo. E isto por quatro processos, que a organização militar mostra com toda a clareza.” (pág.154)

Dividir a duração em segmentos, sucessivos ou paralelos, dos quais cada um deve chegar a um termo específico.” (pág. 155)

“Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico — sucessão de elementos tão simples quanto possível, combinando-se segundo uma complexidade crescente.” (pág.155)


Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova, que tem a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo.” (pág.155)


“Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os exercícios que lhe convêm; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios específicos. Ao termo de cada série, começam outras, formam uma ramificação e se subdividem por sua vez. De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria. Polifonia disciplinar dos exercícios: Os soldados da segunda classe serão treinados todas as manhãs pelos sargentos, cabos, anspeçadas, soldados de primeira classe... Os soldados de primeira classe serão treinados todos os domingos pelo chefe da esquadra...; os cabos e os anspeçadas todas as terças-feiras à tarde pelos sargentos de sua companhia, e estes, aos 2, 12 e 22 de cada mês também à tarde pelos oficiais majores.42 Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica — especializando o tempo de formação e destacando-o do tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos estágios separados uns dos outros por provas graduadas; determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma determinada fase, e que comportam exercícios de dificuldade crescente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram essas séries.”(pág.156)

“Forma-se toda uma pedagogia analítica, muito minuciosa (decompõe até aos mais simples elementos a matéria de ensino, hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do progresso) e também muito precoce em sua história (antecipa largamente as análises genéticas dos ideólogos dos quais aparece como o modelo técnico). Demia, bem no começo do século XVIII, queria que o aprendizado da leitura fosse dividido em sete níveis: o primeiro para os que aprendem a conhecer as letras, o segundo para os que aprendem a soletrar, o terceiro para os que aprendem a juntar as sílabas, para formar palavras, o quarto para os que lêem o latim por frase ou de pontuação em pontuação, o quinto para os que começam a ler o francês, o sexto para os mais capazes na leitura, o sétimo para os que lêem os manuscritos.”(pág.157)
“A colocação em “série” das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder: possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual (de diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação) a cada momento do tempo; possibilidade de caracterizar, portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível que têm nas séries que percorrem; possibilidade de acumular o tempo e a atividade, de encontrá-los totalizados e utilizáveis num resultado último, que é a capacidade final de um indivíduo. Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização. Os procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros, e que se orienta para um ponto terminal e estável. Em suma, um tempo “evolutivo””(pág.157)

“Progresso das sociedades, gênese dos indivíduos, essas duas grandes “descobertas” do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de poder e, mais precisamente, de uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese e totalização. Uma macro e uma microfísica do poder permitiram, não certamente a invenção da história (já há um bom tempo ela não precisava mais ser inventada), mas a integração de uma dimensão temporal, unitária, cumulativa no exercício dos controles e na prática das dominações. A historicidade “evolutiva”, assim como se constitui então — e tão profundamente que ainda hoje é para muitos uma evidência — está ligada a um modo de funcionamento do poder, da mesma forma que a “história-rememoração” das crônicas, das genealogias, das proezas, dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma outra modalidade do poder. Com as novas técnicas de sujeição, a “dinâmica” das evoluções contínuas tende a substituir a “dinástica” dos acontecimentos solenes. ”(pág.158)

“Daí a necessidade de encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas, dos deslocamentos de grupos ou de elementos isolados, das mudanças de posição, de passagem de uma disposição a outra; enfim, de inventar uma maquinaria cujo princípio não seja mais a massa móvel ou imóvel, mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil49; e, acima do próprio soldado, os gestos mínimos, os tempos elementares de ação, os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos.” (pág.160)

O corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força não são mais as variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos. O homem de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser uma coragem ou uma honra.”(pág.161)

“O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar.” (pág.163)

“Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza; a ordem não tem que ser explicada, nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento desejado.”(pág.163)

O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais — sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou ainda aquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; era chamado por excelência o “Sinal” e devia significar em sua brevidade maquinai ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência. O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dos escolares para o mestre e fazê-los ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar. Assim, toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar qualquer exercício, baterá uma vez. Um bom escolar, toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará ouvir a voz do mestre ou antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome. Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel, dizendo com ele no fundo de sua alma: Senhor, eis-me aqui.”(pág. 163 e 164)

“Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza “táticas”. A tática, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar.”(pág.164 e 165)

“Enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou a reconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção individual e coletiva dos corpos.”(pág.166)

Capítulo II: Os Recursos Para o Bom Adestramento

“Walhausen, bem no início do século XVII, falava da “correta disciplina”, como uma arte do “bom adestramento”. O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor.”(pág.167)

Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais — pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.”(pág.167)

“O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.” (pág.167)

“Durante muito tempo encontraremos no urbanismo, na construção das cidades operárias, dos hospitais, dos asilos, das prisões, das casas de educação, esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta: o encaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas. Princípio do “encastramento”. O acampamento foi para a ciência pouco confessável das vigilâncias o que a câmara escura foi para a grande ciência da ótica. ”(pág.169)

“O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento — do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair — começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências. Assim é que o hospitaledifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica: deve permitir que se possa observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os cuidados; a forma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos doentes, deve impedir os contágios; a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve enfim evitar que os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente, decompondo seus humores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos.”(pág. 169)

“Adestrar corpos vigorosos, imperativo de saúde; obter oficiais competentes, imperativo de qualificação; formar militares obedientes, imperativo político; prevenir a devassidão e a homossexualidade, imperativo de moralidade. Quádrupla razão para estabelecer separações estanques entre os indivíduos, mas também aberturas para observação contínua. O próprio edifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar; os quartos eram repartidos ao longo de um corredor como uma série de pequenas celas; a intervalos regulares, encontrava-se um alojamento de oficial, de maneira que cada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda; [os alunos aí ficavam trancados durante toda a noite; e Pâris insistira para que fosse envidraçada] a parede de cada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou dois pés do teto. Além disso a vista dessas vidraças só pode ser agradável, ousamos dizer que é útil sob vários pontos de vista, sem falar das razões de disciplina que podem determinar essa disposição.(pág. 169 e170)

“Mas o olhar disciplinar teve, de fato, necessidade de escala. Melhor que o círculo, a pirâmide podia atender a duas exigências: ser bastante completa para formar uma rede sem lacuna — possibilidade em conseqüência de multiplicar seus degraus, e de espalhá-los sobre toda a superfície a controlar; e entretanto ser bastante discreta para não pesar como uma massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para ela um freio ou um obstáculo; integrar-se ao dispositivo disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis. É preciso decompor suas instâncias, mas para aumentar sua função produtora. Especificar a vigilância e tornála funcional.”(pág.171)

“Vigiar torna-se então uma função definida, mas deve fazer parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em todo o seu comprimento. Um pessoal especializado torna-se indispensável, constantemente presente, e distinto dos operários: Na grande manufatura, tudo é feito ao toque da campainha, os operários são forçados e reprimidos. Os chefes, acostumados a ter com eles um ar de superioridade e de comando, que realmente é necessário com a multidão, tratam-nos duramente ou com desprezo; acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pela manufatura.” (pág.171 e 172)

“A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.” (pág.172)

“Temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua em que estão integrados no interior de um dispositivo único três procedimentos: o ensino propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade pedagógica, enfim uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência. A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes “invenções” técnicas do século XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder disciplinar, graças a ela, torna-se um sistema “integrado”, ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é exercido.” (pág.173)

“O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo.”(pág.174)

“Graças às técnicas de vigilância, a “física” do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e de mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos “corporal” por ser mais sabiamente “físico”.”(pág.174)

“Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infra-penalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.”(pág.175)

“Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora.”(pág.175)

“A ordem que os castigos disciplinares devem fazer respeitar é de natureza mista: é uma ordem “artificial”, colocada de maneira explícita por uma lei, um programa, um regulamento. Mas é também uma ordem, definida por processos naturais e observáveis: a duração de um aprendizado, o tempo de um exercício, o nível de aptidão têm por referência uma regularidade, que é também uma regra. As crianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa “lição” de que ainda não são capazes, pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada; entretanto a duração de cada estágio é fixada de maneira regulamentar e quem, no fim de três meses, não houver passado para a ordem superior deve ser colocado, bem em evidência, no banco dos “ignorantes”. A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência jurídico-natural.”(pág.176)

“O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve portanto ser essencialmente corretivo. Ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário (multas, açoite, masmorra), os sistemas disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício — aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido: o regulamento de 1766 para a infantaria previa que os soldados de primeira classe “que mostrarem alguma negligência ou má vontade serão enviados para a última classe”, e só poderão voltar à primeira, depois de novos exercícios e um novo exame.”(pág.176)

“A punição disciplinar é, pelo menos por uma boa parte, isomorfa à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua repetição, sua insistência redobrada. De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é diretamente obtido pela mecânica de um castigo. Castigar é exercitar.” (pág.177)
“Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal; em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre pólo positivo e pólo negativo; todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos. É possível, além disso, estabelecer uma quantificação e uma economia traduzida em números. Uma contabilidade penal, constantemente posta em dia, permite obter o balanço positivo de cada um. A “justiça” escolar levou muito longe esse sistema, de que se encontram pelo menos os rudimentos no exército ou nas oficinas.” (pág.177)

“A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e caráter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição.” (pág.178)

“Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto — que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.”(pág.179)

“Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos antes que desde o século XVIII ele veio unir-se a outros poderes obrigando-os a novas delimitações; o da Lei, o da Palavra e do Texto, o da Tradição. O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dos processos e dos produtos industriais.18 Tal como a vigilância e junto com ela, a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças individuais.”(pág.180)

“O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado.” (pág.181)

“O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do poder.” (pág.183)

“O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória.”(pág.183)

“Seu resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui ao nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de acumulação documentária. Um “poder de escrita” é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da disciplina.” (pág.185)

“Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. Esses códigos eram ainda muito rudimentares, em sua forma qualitativa ou quantitativa, mas marcam o momento de uma primeira “formalização” do individual dentro de relações do poder.”(pág.185)

“Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não contudo para reduzi-lo a traços “específicos”, como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa “população. (pág.186)

Capítulo III: O Panoptismo

Em primeiro lugar, um policiamento espacial estrito: fechamento, claro, da cidade e da “terra”, proibição de sair sob pena de morte, fim de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de um intendente”(pág.190)

“Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos almotacés ou ao prefeito. No começo da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes presentes na cidade um por um; nela se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição”; um exemplar para o intendente do quarteirão, um segundo no escritório da prefeitura, um outro para o síndico poder fazer a chamada diária. Tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados.”(pág.191)

“O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura, o outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer poder sobre os homens, de controlar suas relações, de desmanchar suas perigosas misturas. A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais — é a utopia da cidade perfeitamente governada. A peste (pelo menos aquela que permanece no estado de previsão) é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do poder disciplinar. Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis, os juristas se punham imaginariamente no estado de natureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governantes sonhavam com o estado de peste. No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão.” (pág.194)

“Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo.” (pág.195)

“O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto.”

“Mas encontramos no programa do Panóptico a preocupação análoga da observação individualizante, da caracterização e da classificação, da organização analítica da espécie. O Panóptico é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo. Fora essa diferença, o Panóptico, também, faz um trabalho de naturalista. Permite estabelecer as diferenças: nos doentes, observar os sintomas de cada um, sem que a proximidade dos leitos, a circulação dos miasmas, os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos; nas crianças, anotar os desempenhos (sem que haja limitação ou cópia), perceber as aptidões, apreciar os caracteres, estabelecer classificações rigorosas e, em relação a uma evolução normal, distinguir o que é “preguiça e teimosia” do que é “imbecilidade incurável”; nos operários, anotar as aptidões de cada um, comparar o tempo que levam para fazer um serviço, e, se são pagos por dia, calcular seu salário em vista disso.”(pág.197)

“Este é um dos aspectos. Por outro lado, o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. Experimentar remédios e verificar seus efeitos. Tentar diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento, e procurar as mais eficazes. Ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários, estabelecer qual é a melhor. Tentar experiências pedagógicas — e particularmente abordar o famoso problema da educação reclusa, usando crianças encontradas; ver-se-ia o que acontece quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram; poder-se-ia verificar se, como pensa Helvetius, qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa; poder-se-ia acompanhar “a genealogia de qualquer idéia observável”; criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento, fazer alguns acreditarem que dois e dois não são quatro e que a lua é um queijo, depois juntá-los todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos; haveria então discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro; haveria pelo menos ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica. O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá julgá-los continuamente, modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por sua vez, poderá ser facilmente observado. Um inspetor que surja sem avisar no centro do Panóptico julgará com uma única olhadela, e sem que se possa esconder nada dele, como funciona todo o estabelecimento” (pág.198)


O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça.(pág.198)


“O Panóptico, ao contrário, tem um papel de amplificação; se organiza o poder, não é pelo próprio poder, nem pela salvação imediata de uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as forças sociais — aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar.” (pág.201)

O panoptismo é o princípio geral de uma nova “anatomia política” cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina.”(pág.202)

“A “disciplina” não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo seja de instituições “especializadas” (as penitenciárias, ou as casas de correção do século XIX) seja de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado (as casas de educação, os hospitais), seja de instâncias preexistentes que nela encontram maneira de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos internos de poder (um dia se precisará mostrar como as relações intrafamiliares, essencialmente na célula pais-filhos, se “disciplinaram”, absorvendo desde a era clássica esquemas externos, escolares, militares, depois médicos, psiquiátricos, psicológicos, que fizeram da família o local de surgimento privilegiado para a questão disciplinar do normal e do anormal), seja de aparelhos que fizeram da disciplina seu princípio de funcionamento interior (disciplinação do aparelho administrativo a partir da época napoleônica), seja enfim de aparelhos estatais que têm por função não exclusiva mas principalmente fazer reinar a disciplina na escala de uma sociedade (a polícia).”(pág.208)


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