O processo civilizador – volume dois Formação do Estado e Civilização. Nobert Elias ( Resumo e Fichamento)
Título
da Obra: O processo civilizador – volume dois Formação
do Estado e Civilização.
Autor: Nobert
Elias
Editor:
Zahar
Tradução:
Raquel Ramalhete
Lugar:
Rio de Janeiro
Data:
1993
Seção
do livro: Parte II: Sugestões para uma teoria de
processos civilizadores.
Resumo: Nessa
obra Nobert Elias disserta sobre as mudanças ocorridas no comportamento social
e psicológico na passagem da sociedade guerreira pra sociedade de corte,este é
o processo que ele denomina de processo civilizador. Elias comenta que durante
essa mudança histórica houve uma espécie de racionalização e psicologização das
ações dos indivíduos, ou seja, o incucamento de um determinado padrão de
comportamento que estava diretamente ligado ao seu reconhecimento social. O
autor tem a percepção de que existem sociedades complexas e sociedades menos
complexas na qual os tipos de interações e integrações sociais são diferentes.
Elias também ressalta a importância do
monopólio da violência para a transformação desta sociedade, afirmando que com
a chegada da Monarquia ou Estado Nação o legitimo detentor do monopólio da
violência que tem por obrigação oferecer segurança aos indivíduos, se perde a
liberdade de se utilizar da violência, dessa forma para que o individuo se
contenham, eles iniciam um processo de autocontrole, ou seja, a mudança
civilizadora no comportamento ocorre necessariamente como o monopólio da
violência física e a extensão das cadeias de ação e interdependência social. A
ameaça que um homem representa ao outro agora é calculável e controlável.
Fichamento:
“Uma maneira simples de
descrever a diferença entre a integração do indivíduo em uma sociedade complexa
e em outra menos complexa consiste em pensar em seus diferentes sistemas
rodoviários. Estes, em certo sentido, constituem funções espaciais de uma
integração social que, em sua totalidade, não se pode expressar simplesmente em
conceitos derivados do continuum quadrimensional. Pensemos nas estradas
interioranas de uma sociedade simples de guerreiros, com uma economia de troca,
sem calçamento, expostas ao vento e a chuva. Com raras exceções, há pouco
trafégo; o principal perigo é um ataque de soldados ou salteadores. Quando as
pessoas olham em volta, para as arvores, morros ou a própria estrada, fazem
isso principalmente porque precisam estar sempre preparadas para um ataque
armado, e apenas secundariamente porque têm que evitar colisões. A vida nas
estradas principais dessa sociedade exige uma prontidão constante para a luta,
e dá livre rédea as emoções, em defesa da vida ou das posses contra o ataque físico.
Já o trafégo nas ruas principais de uma grande cidade na sociedade complexa de
nosso tempo exige uma modelação inteiramente diferente do mecanismo psicológico.
Neste caso, é mínimmo o perigo de ataque físico. Carros correm em todas as
direções, e pedestres e ciclistas tentam costurar seu caminho através da mêlée de veículos; nos principais cruzamentos,
guardas tentam dirigir o tráfego, com variável grau de sucesso. Esse controle
externo, porém, baseia-se na suposição de que todos os indivíduos estão
regulando.seu comportamento com a maior exatidão, de acordo com as necessidades
dessa rede .
O principal perigo que uma
pessoa representa para a outra nessa agitação toda é o de perder o
autocontrole. Uma regulação constante e altamente diferenciada do próprio
comportamento e necessária para o individuo seguir seu caminho pelo tráfego. Se
a tensão desse autocontrole constante torna-se grande demais para ele, isso e
suficiente para colocar os demais em perigo mortal. Trata-se, é claro, apenas
de uma imagem. O tecido de cadeia de ações em que se inclui cada ato individual
nessa complexa sociedade é muito mais complicado, e bem mais intricado o
autocontrole ao qual ele esta acostumado desde a infância, do que aparece neste
exemplo. Mas este da pelo menos uma ideia de como a grande pressão formativa
sobre a constituição do homem "civilizado", seu autocontrole
constante e diferenciado, vincula-se a crescente diferenciação e
"estabilização das funções sociais e à multiplicidade e variedade cada vez
maiores de atividades que ininterruptamente têm que se sincronizar. (pág. 196 e
197)
“Reciprocamente, as sociedades com
monopólio mais estáveis da força, que sempre começam encarnada numa grande
corte de príncipes ou reis, são aquelas
em que a divisão de funções está mais ou menos avançada, nas quais as
cadeias de ações que ligam os indivíduos são mais longas e maior dependência
funcional entre as pessoas. Nelas o individuo é protegido principalmente contra
ataques súbitos, contra a irrupção de violência física em sua vida. Mas ao
mesmo tempo é forçado a reprimir em si qualquer impulso emocional para atacar
outra pessoa. As demais formas de compulsão que nesse momento,prevalecem nos
espaços sociais modelam na mesma direção a conduta e os impulsos afetivos do
indivíduo. Quanto mais apertada de torna a teia de interdependência quem que o
individuo está emaranhado, com o aumento da divisão de funções, maiores são os
espaços por onde se estende essa rede, integrando-se em unidades funcionais ou
intitucionais- mais ameaçada se torna a existência social do indivíduo que dá
expressão a impulsos e emoções espontâneas, e maior a vantagem social daqueles
capazes de moderar suas paixões; mais fortemente é cada indivíduo controlado,
desde a tenra idade,para levar em conta os efeitos de suas próprias ações ou de
outras pessoas sobre uma serie inteira de elos na cadeia social.”(pág.198)
“[...] o constante autocontrole ao
qual o indivíduo agora está cada vez mais acostumado procura reduzir os
contrastes e mudanças súbitas de conduta e a carga afetiva de toda
autoexpressão. As pressões que atuam sobre o individuo tendem a produzir uma
transformação de toda a economia das paixões e afetos rumo a uma regulação mais
contínua, estável e uniforme dos mesmos, em todas as áreas de conduta, em todos
os setores de sua vida.” (pág.202)
“Em parte automaticamente, e até certo
ponto através da conduta e dos hábitos, os adultos induzem modelos de
comportamento correspondente nas crianças.Desde o começo da mocidade, o
individuo é treinado no autocontrole e no espírito da previsão dos resultados
de seus atos, de que precisará para
desempenhar funções adultas.Esse autocontrole é instilado tão profundamente
desde essa tenra idade que , como se fosse uma estação de retransmissão de
padrões sociais, desenvolve-se nele uma autosupervisão automática das paixões,
um ‘superego’ mais diferenciado e estável, e uma parte dos impulsos emocionais
e inclinações afetivas sai por completo do alcance direto do nível de consciência.”(pág.202)
“A vida torna-se menos perigosa, mas
também menos emocional ou agradável, pelo menos no que diz respeito à satisfação direta do prazer. Para
tudo o que faltava na vida diária um substituto foi criado nos sonhos, nos
livros, na pintura. De modo que, evoluindo em filmes à violência e à paixão erótica.[...]
“Essa fusão repetida de
padrões de conduta das classes funcionalmente superiores com os das classes em
ascensão não deixa de ter certa importância, considerando-se a atitude
curiosamente ambivalente das primeiras nesse processo. A habituação ao espírito
de previsão e o controle mais rigoroso da conduta e das emoções, para os quais
se inclinam as classes superiores por motivo de sua situação e funções,
constituem importante instrumento de sua predominância, como no caso do
colonialismo europeu, por exemplo. Servem como marcas de distinção e prestígio.
Exatamente por esse motivo, tal sociedade considera como transgressão do modelo
dominante de controle das paixões e sentimentos todo e qualquer “afrouxamento”
de seus membros. A desaprovação acentua-se quando aumenta o poder social e o
tamanho do grupo mais baixo, em ascensão, e assim torna-se mais intensa a
competição pelas mesmas oportunidades entre os grupos superior e inferior. O
esforço e o espírito de previsão necessários para manter a posição da classe
superior manifestam-se nos contactos internos de seus membros entre si, no grau
de supervisão recíproca que praticam, na estigmatização severa e nas
penalidades que impõem aos seus membros que infringem o código comum que os
distingue. O medo provocado pela situação de todo o grupo, pela sua luta para
preservar a idolatrada e ameaçada posição, age diretamente como uma força para
manter o código de conduta, o cultivo do superego em seus membros. Ela é
convertida em ansiedade pessoal, no medo do indivíduo de degradarse ou
simplesmente perder prestígio na sociedade em que vive. E é esse medo de perda
de prestígio aos olhos dos demais, instilado sob a forma de auto-compulsão,
seja na forma de vergonha seja no senso de honra, que garante a reprodução
habitual da conduta característica, e como sua condição um rigoroso controle de
pulsões em cada pessoa.” (pág. 212 e 213)
“Recuando um passo na
história, podemos observar no próprio Ocidente um movimento semelhante: a
adoção pelas classes inferiores urbana e agrária de padrões civilizados de
conduta, a crescente habituação desses grupos à previsão do futuro, a uma
limitação e controle mais estritos da manifestação de emoções e, também, a um
grau mais alto de autocontrole individual. Neste caso, também, de acordo com a
estrutura da história de cada país, variedades muito diferentes de controle das
emoções emergem no contexto da conduta civilizada. Na Inglaterra, na conduta
dos operários ainda podemos ver traços das maneiras da aristocracia fundiária e
de mercadores em uma ampla teia de ofícios, assim como na França, os ares dos
cortesãos e de uma burguesia elevada ao poder pela Revolução. Nos
trabalhadores, igualmente, encontramos uma regulação mais estrita da conduta,
um tipo de cortesia mais calcado na tradição das nações colonizadoras, que
durante longo período exerceram a função de classe superior dentro de uma larga
rede interdependente, e um controle menos refinado das emoções em nações que só
tarde ou nunca conseguiram expandir-se colonialmente, isto porque os monopólios
de força e tributação e a centralização do poder nacional — que constituem
precondições para qualquer expansão colonial duradoura — só se desenvolveram
mais tarde nelas do que em suas concorrentes.”(pág.214)
“O espírito de previsão, uma
auto-disciplina mais complexa, a formação mais estável do superego, fortalecida
pela interdependência crescente, tornaram-se visíveis primeiro nos pequenos
centros funcionais. Depois, mais e mais círculos funcionais no Ocidente se
voltaram para a mesma direção. Finalmente, em combinação com formas
preexistentes de civilização, a mesma transformação das funções sociais e,
destarte, da conduta e de toda a personalidade, começou a ocorrer em países
fora da Europa. Esse é o quadro que emerge se tentamos examinar globalmente o
curso seguido até agora pelo movimento civilizador ocidental no espaço
social.”(pág.215)
“A formação dos monopólios de
tributação e força física, e das grandes cortes em volta dos mesmos, certamente
não foi mais do que um de vários processos interdependentes, dos quais o
processo civilizador constitui uma parte. Mas sem dúvida alguma aqui temos uma
das chaves que nos faculta acesso às forças propulsoras desses processos. A
grande corte real permanece durante certo período no centro da teia social que
estabelece e mantém em movimento a civilização da conduta. Ao estudar a
sociogênese da corte, encontramo-nos no centro de uma transformação
civilizadora especialmente pronunciada e que é precondição indispensável para
todos os subseqüentes arrancos e recuos do processo civilizador. Vemos como,
passo a passo, a nobreza belicosa é substituída por uma nobreza domada, com
emoções abrandadas, uma nobreza de corte. Não só no processo civilizador
ocidental, mas tanto quanto podemos compreender, em todos os grandes processos
civilizadores, uma das transições mais decisivas é a de guerreiros para
cortesãos. Dispensa dizer que há estágios e graus os mais diversos dessa
transição, dessa pacificação interna da sociedade. No Ocidente, a transformação
dos guerreiros iniciou-se e prosseguiu com grande lentidão no século XI ou XII
até que, devagar, chegou à sua conclusão nos séculos XVII e XVIII.”(pág.216 e
217)
“Os contactos entre burgueses
e guerreiros, como os que ocorriam nas cortes corteses porém, ainda eram
relativamente raros. De modo geral, o entrelaçamento de dependências entre
burguesia e nobreza ainda era superficial em comparação com o período
posterior. As cidades e os senhores feudais na vizinhança imediata ou mais
distante ainda se opunham uns aos outros, como unidades políticas e sociais
distintas. O quão pouco se desenvolvera a divisão de funções e o quanto era
grande a independência relativa dos diferentes estados são claramente
demonstrados pelo fato de que a difusão de costumes e de idéias de cidade a
cidade, de corte a corte, de mosteiro a mosteiro, — isto é, os relacionamentos
dentro do mesmo estrato social —, eram, mesmo em longas distâncias, mais
efetivos do que os contactos entre castelo e cidades na mesma região138. Era
essa a estrutura social que — para servir de contraste — temos que conservar em
mente a fim de compreender a estrutura e os processos sociais distintos nos
quais, gradualmente, emergiu uma crescente “civilização” da maneira como o
indivíduo orientava sua vida.”(pág.218)
“O mesmo acontecia no tocante
ao padrão de vida: o contraste entre as classes altas e baixas dessa sociedade
era extremamente grande, em especial na fase em que um número decrescente de
senhores muito poderosos e ricos emergia da massa de guerreiros. Encontramos
hoje contrastes semelhantes em áreas em que a estrutura social se aproxima mais
da que havia na sociedade medieval do Ocidente do que na do Ocidente hoje,
como, por exemplo, no Peru ou na Arábia Saudita. Membros de uma pequena elite
auferiam uma renda imensa, da qual uma parte maior do que acontece hoje com as
altas rendas no Ocidente era usada para consumo pessoal de seu dono, no luxo de
sua “vida privada”, em festas e outros prazeres. Os membros da classe mais
baixa, os camponeses, em contraste, viviam miseravelmente, sob a constante
ameaça das más colheitas e da fome. Mesmo em circunstâncias normais, o produto
de seu trabalho mal dava para lhes garantir a subsistência, e o padrão de vida
que tinham era muito mais baixo do que o de qualquer classe nas sociedades
“civilizadas”. Só quando esses contrastes foram reduzidos, quando, sob o efeito
da pressão competitiva que afetava de cima a baixo essa sociedade, a divisão de
funções e a interdependência em vastos territórios aumentou gradualmente,
quando a dependência funcional das classes superiores cresceu, enquanto subia o
poder social e os padrões de vida das classes inferiores, só então
identificamos o espírito de previsão e o autocontrole nas classes superiores, o
contínuo movimento ascendente das inferiores e todas as demais mudanças que
podemos observar em todos os arrancos civilizadores que abrangem estratos mais
amplos.”(pág.219)
“Para começar — no ponto de
partida desse movimento, por assim dizer — guerreiros viviam sua vida, e os
burgueses e camponeses a sua. Mesmo havendo proximidade espacial, era profundo
o abismo entre os estados: costumes, gestos, vestuários e divertimentos eram
diferentes, mesmo que não estivessem de todo ausentes influências mútuas. Em
todos os lados o contraste social — ou, como num mundo mais uniforme se prefere
dizer, a variedade de vida — era mais acentuado. A classe alta, a nobreza,
ainda não sentia qualquer pressão social apreciável vinda de baixo; os próprios
burgueses quase nunca lhe contestavam a função e o prestígio. Ela não precisava
ainda manter-se alerta para conservar sua posição como classe superior. Tinha
suas terras e sua espada: o perigo principal para cada guerreiro era outro
guerreiro. Assim, era menor o controle mútuo que os nobres impunham à própria
conduta como meio de distinção de classe, de modo que, também desse lado, o
cavaleiro individual estava sujeito a um grau menor de autocontrole. Ocupava
sua posição social com muito mais segurança e naturalidade que o nobre de
corte. Não precisava banir da vida a grosseria e a vulgaridade. A preocupação
com as classes baixas nunca o perturbava. Não sofria permanentemente de
ansiedade e, portanto, não havia na vida da classe superior nada que lembrasse
as classes mais baixas, como aconteceu mais tarde. Nenhuma repugnância ou
embaraço lhe despertava a vista das classes mais baixas e seu comportamento,
exceto um sentimento de desprezo, que era expresso abertamente, sem qualquer
ressalva, sem inibições e que não tinha que ser sublimado. As Cenas da Vida de
um Cavaleiro, mencionadas antes neste estudo139, transmitem-nos alguma idéia
dessa atitude, embora a documentação seja de um período posterior, já cortesão,
da vida cavaleirosa. Já descrevemos em detalhe e de vários ângulos como os
guerreiros foram atraídos, passo a passo, para uma interdependência cada vez
mais acentuada relativamente a outras classes e grupos, como um número
crescente dentre eles caiu na dependência funcional e, finalmente,
institucional de outrem. Foram processos que se desenvolveram na mesma direção
durante séculos: a perda da auto-suficiência militar e econômica por todos os
guerreiros e a conversão de parte deles em cortesãos. Podemos identificar o
funcionamento dessas forças de integração em data tão remota como os séculos XI
e XII, quando domínios territoriais foram consolidados e certo número de
indivíduos, especialmente cavaleiros menos beneficiados, se viram obrigados a
procurar cortes mais ou menos importantes à procura de serviço. Lentamente, as
poucas grandes cortes da feudalidade principesca se destacaram sobre as demais,
e só os membros de Casas Reais se viram em condições de competir livremente
entre si” (pág. 219 e 220)
“Finalmente, no século XV e,
principalmente, no século XVI, acelerou-se o movimento subjacente a essa
transformação, — a diferenciação de funções, a crescente interdependência e a
integração de áreas e classes cada vez maiores. Esses fatos se notam com especial
clareza na evolução de um instrumento social cujo emprego e mudanças indicam
com máxima exatidão o grau da divisão de funções, bem como a extensão e
natureza de interdependência social: o avanço da moeda. O volume de moeda
cresceu mais rapidamente e, na mesma medida, caiu seu valor, ou poder
aquisitivo. Esse movimento, também, isto é, a desvalorização do metal cunhado,
começou, tal como a transformação de guerreiros em cortesãos, logo no início da
Idade Média. A novidade na transição dos tempos medievais para os modernos não
foi a monetarização, a queda do poder aquisitivo do metal cunhado como tal, mas
o ritmo e extensão do movimento. Como tão freqüentemente acontece, o que de
início parecia ser uma mudança meramente quantitativa, visto mais de perto revelou-se
uma manifestação de mudanças qualitativas, de transformações na estrutura das
relações humanas na sociedade.”(pág.220)
“Na corte, e acima de tudo na
grande corte absolutista, formou-se, pela primeira vez, um tipo de sociedade e
de relacionamentos humanos com características estruturais que desde então,
durante um longo período da história do Ocidente e em meio a numerosas
variações, várias vezes cumpriram um papel decisivo. Num vasto e populoso
território, que de modo geral estava livre da violência física, surgiu a “boa
sociedade”. Mas mesmo que o emprego da violência física diminuísse no convívio
humano, mesmo que os duelos estivessem proibidos, as pessoas, sob uma grande
variedade de maneiras, exerciam pressão e força umas sobre as outras.
“A vida nesse círculo não era,
de maneira alguma, pacífica. Um número muito grande de pessoas dependia
continuamente de outras. Era intensa a competição por prestígio e pelo favor
real. “Affaires”, disputas sobre a precedência e o favor, jamais cessavam. Se
não mais desempenhavam papel tão importante como meio de decisão, a espada fora
substituída pela intriga e por conflitos nos quais as carreiras e o sucesso
social eram perseguidos por meio de palavras. Estas exigiam e produziam
qualidades diferentes das que eram necessárias nas lutas armadas, que tinham de
ser resolvidas com armas na mão.
A reflexão contínua, a capacidade de previsão,
o cálculo, o autocontrole, a regulação precisa e organizada das próprias
emoções, o conhecimento do terreno, humano e não-humano, onde agia o indivíduo,
tornaram-se precondições cada vez mais indispensáveis para o sucesso social.
Todos os indivíduos pertenciam a uma coterie, a um círculo social que, quando
necessário, o apoiava. Mas esses grupamentos mudavam. Entravam em alianças,
sempre que possível, com pessoas altamente graduadas na corte. Mas a posição na
corte podia mudar com grande rapidez. Tinham rivais, inimigos declarados e
ocultos.
E a tática empregada nessas lutas, como também
nas alianças, exigiam cuidadoso exame. O grau de distanciamento e familiaridade
tinha que ser cuidadosamente medido: cada cumprimento, cada conversa
revestia-se de uma importância muito superior do que era realmente dito ou
feito, porque indicava a situação da pessoa e contribuía para a corte formar
sua opinião sobre ela. “Que um favorito vigie atentamente sua conduta, porque, se
não me conservar em sua antecâmara à espera por tanto tempo quanto o habitual,
se seu rosto for mais aberto, se ele fizer menos carranca, se me escutar com
maior boa vontade e me acompanhar um pouco mais longe quando eu me dirigir à
porta de saída, pensarei que ele está começando a cair em desgraça — e terei
razão.”
A corte é uma espécie de bolsa de valores e,
como em toda “boa sociedade”, uma estimativa do “valor” de cada indivíduo está
continuamente sendo feita. Mas, neste caso, o valor tem seu fundamento real não
na riqueza ou mesmo nas realizações ou capacidade do indivíduo, porém na estima
que o rei tem por ele, na influência de que goza junto aos poderosos, na sua
importância no jogo das coteries da corte. Tudo isso, estima, influência,
importância, todo esse jogo complexo e sério no qual estão proibidas a
violência física e as explosões emocionais diretas, e a ameaça à existência
exige de cada jogador uma constante capacidade de previsão e um conhecimento
exato de cada um, de sua posição e valor na rede de opiniões da corte, tudo
isso exige um afinamento preciso da conduta a esse valor. Qualquer erro,
qualquer descuido reduz o valor do indivíduo na opinião da corte e pode pôr em
xeque a sua posição. “O homem que conhece a corte é senhor de seus gestos, de
seus olhos e expressão. É um homem profundo, impenetrável. Dissimula as más
ações que comete, sorri para os inimigos, reprime o mau-humor, disfarça as
paixões, rejeita o que quer o coração, age contra os sentimentos.”
É inequívoca a transformação da nobreza no
rumo do comportamento “civilizado”. A conduta não é ainda tão “civilizada” como
mais tarde será na sociedade burguesa, porque só em relação a seus pares é que
o cortesão e a dama da corte precisam se sujeitar a essas limitações, que eles
observam bem menos face a seus inferiores. Mas, afora o fato de que o padrão de
controle de paixões e sentimentos na corte se distingue daquele que vigora na
sociedade burguesa, é também mais intensa e percepção de que esse controle é
exercido por razões sociais. Inclinações opostas não desapareceram ainda por
completo da consciência de vigília, o autocontrole não se tornou ainda
inteiramente um mecanismo de hábitos que opera quase automaticamente e inclui
todos os relacionamentos humanos. Mas já é muito claro que os seres humanos
estão se tornando mais complexos e internamente divididos de uma maneira muito
específica. Todo homem, por assim dizer, enfrenta a si mesmo. Ele “disfarça as
paixões”, “rejeita o que quer o coração” e “age contra seus sentimentos”. O prazer
ou a inclinação do momento são contidos pela previsão de conseqüências
desagradáveis, se forem atendidos. E é este, na verdade, o mesmo mecanismo
através do qual os adultos — sejam eles os pais ou outras pessoas — instilam um
“superego” estável nas crianças. A paixão momentânea e os impulsos afetivos
são, por assim dizer, reprimidos e dominados pela previsão de aborrecimentos
posteriores, pelo medo de uma dor futura, até que, pela força do hábito, esse
medo finalmente contenha o comportamento e as inclinações proibidos, mesmo que
nenhuma outra pessoa esteja fisicamente presente, e a energia dessas
inclinações seja canalizada numa direção inócua, sem o risco de qualquer
aborrecimento. De conformidade com a transformação da sociedade, são também
reconstruídas as relações interpessoais, a constituição afetiva do indivíduo: à
medida que aumentam a série de ações e o número de pessoas de quem dependem o
indivíduo e seus atos, torna-se mais firme o hábito de prever conseqüências a
longo prazo. E na mesma proporção em que mudam o comportamento e a estrutura da
personalidade do indivíduo, muda também sua maneira de encarar os demais. A
imagem que ele forma dos outros torna-se mais rica em nuanças, mais isenta de
emoções espontâneas, — ela é, numa palavra, “psicologizada”.(pág.225,226 e 227)
“E muito do que se pode dizer
a respeito dessa “psicologização” aplica-se também à “racionalização”, que
lentamente vai se tornando perceptível, a partir do século XVI, nos aspectos ou
mais variados da sociedade. Este tampouco é um fato isolado, mas apenas uma
manifestação da mudança em toda a personalidade, que emerge nessa época, e da
crescente capacidade de previsão que a partir desse período é também exigida e
instilada por um número crescente de funções sociais.”
“Mas, com certeza, essas duas
formas de capacidade de previsão, a racionalização e a psicologização — na
nobreza de corte e nos principais grupos de classe média —, por mais diferentes
fossem em seus padrões, desenvolveram-se em estreita combinação entre si. Indicam
um crescente entrelaçamento entre nobreza e burguesia e surgem de uma
transformação nos relacionamentos humanos que ocorria por toda a sociedade:
estavam vinculados da maneira a mais íntima possível com a mudança que levara
os estados frouxamente ligados da sociedade medieval a se tornarem,
gradualmente, formações sociais subordinadas na sociedade centralizada do
Estado absolutista. O processo histórico de racionalização constitui um exemplo
de primeira água de um processo que até agora o pensamento sistemático mal tem
compreendido. Ele pertence — se observarmos o modelo tradicional das
disciplinas acadêmicas — a uma ciência que ainda não existe, a psicologia
histórica. Na atual estrutura da pesquisa histórica, uma nítida linha divisória
costuma ser traçada entre o trabalho dos historiadores e o dos psicólogos. Só
os ocidentais de nossos dias parecem necessitar ou ser acessíveis à
investigação psicológica ou, no máximo, também os povos chamados de primitivos
que ainda sobrevivem. Permanece obscuro o caminho que leva, na própria história
ocidental, da estrutura mais simples, primitiva, para a mais diferenciada.
Exatamente porque o psicólogo pensa não-historicamente, porque aborda as
estruturas psicológicas dos homens de nossos dias como se fossem algo sem evolução
ou mudança, os resultados de suas investigações de pouco servem ao historiador.
E porque, preocupado com o que chama de fatos, evita problemas psicológicos, o
historiador pouco tem a dizer ao psicólogo”
“No curso da mesma
transformação, as funções mentais conscientes desenvolvem-se no rumo do que é
chamado cada vez mais de “racionalização”: só com a diferenciação mais nítida e
firme da personalidade é que as funções psicológicas dirigidas para fora
assumem o caráter de uma consciência que funciona mais racionalmente, menos
tisnada por impulsos emocionais e fantasias afetivas. Dessa maneira, a forma e
a estrutura das funções psicológicas de direção de si mesmo mais conscientes e
inconscientes jamais poderão ser compreendidas se forem imaginadas como alguma
coisa que exista ou funcione, em qualquer sentido, isoladamente do resto. Ambas
são igualmente fundamentais para a existência do ser humano e juntas formam um
único grande continuum funcional. Só podem ser compreendidas em conexão com a
estrutura dos relacionamentos entre pessoas e com as mudanças a longo prazo
nessa estrutura.”
“A “racionalização” não passa
— pensemos, por exemplo, na transformação de guerreiros em cortesãos — de uma
manifestação do rumo em que a modelação de pessoas em configurações sociais
específicas mudou neste período. Mudanças desse tipo, porém, não se “originam”
numa classe ou outra, mas surgem, sim, em conjunto com as tensões entre
diferentes grupos funcionais no campo social e entre as pessoas que competem
dentro deles. Sob a pressão de tensões desse tipo, que saturam todo o tecido da
sociedade, toda a estrutura desta última muda, numa fase dada, na direção de
uma crescente centralização de domínios específicos, de uma maior
especialização, e de uma integração mais estreita dos indivíduos isolados no
seu interior. Com essa transformação de todo o campo social, a estrutura das
funções sociais e psicológicas muda também — inicialmente em setores pequenos
e, mais tarde, cada vez maiores — no rumo da racionalização.”
“Não menos característico de
um processo civilizador que a “racionalização” é a peculiar modelação da
economia das pulsões que conhecemos pelos nomes de “vergonha” e “repugnância”
ou “embaraço”. O forte arranco da racionalização e o não menos (durante algum
tempo) forte avanço do patamar da vergonha e repugnância que se tornou, em
termos gerais, cada vez mais perceptível na constituição do homem ocidental a
partir do século XVI, foram dois lados de uma mesma transformação na estrutura
da personalidade social. O sentimento de vergonha é uma exaltação específica,
uma espécie de ansiedade que automaticamente se reproduz na pessoa em certas
ocasiões, por força do hábito. Considerado superficialmente, é um medo de
degradação social ou, em termos mais gerais, de gestos de superioridade de
outras pessoas. Mas é uma forma de desagrado ou medo que surge
caracteristicamente nas ocasiões em que a pessoa que receia cair em uma
situação de inferioridade não pode evitar esse perigo nem por meios físicos
diretos nem por qualquer forma de ataque. Essa impotência ante a superioridade
dos outros, essa total fragilidade diante deles, não surgem diretamente da
ameaça de superioridade física que os demais realmente representem — embora,
sem dúvida, tenha suas origens numa compulsão física, na inferioridade corporal
da criança frente aos pais ou mestres. Nos adultos, porém, a impotência resulta
do fato de que as pessoas cuja superioridade se teme estão de acordo com o
próprio superego da pessoa, com a agência de auto-limitação implantada no indivíduo
por outros de quem ele foi dependente, que exerciam poder e possuíam
superioridade sobre ele. De conformidade com isso, a ansiedade que denominamos
de “vergonha” é profundamente velada à vista dos outros. Por forte que seja,
nunca é expressada em gestos violentos. A vergonha tira sua coloração
específica do fato de que a pessoa que a sente fez ou está prestes a fazer
alguma coisa que a faz entrar em choque com pessoas a quem está ligada de uma
forma ou de outra, e consigo mesma, com o setor de sua consciência mediante o
qual controla a si mesma. O conflito expressado no par vergonha-medo não é
apenas um choque do indivíduo com a opinião social prevalecente: seu próprio
comportamento colocou-o em conflito com a parte de si mesmo que representa essa
opinião. É um conflito dentro de sua própria personalidade. Ele mesmo se
reconhece como inferior. Teme perder o amor e respeito dos demais, a quem
atribui ou atribuiu valor. A atitude dessas pessoas precipitou nele uma atitude
dentro de si que ele automaticamente adota em relação a si mesmo. E é isso o
que o torna tão impotente diante de gestos de superioridade de outras pessoas
que, de alguma maneira, deflagram nele esse automatismo. Isso também explica
por que o medo de transgredir as proibições sociais assume mais claramente o
caráter de vergonha quanto mais perfeitamente as restrições externas foram
transformadas, pela estrutura da sociedade, em auto-restrições, e quanto mais
abrangente e diferenciado se tornou o círculo de auto-restrições onde se manifesta
a conduta da pessoa. A tensão interna, a agitação que surge em todos os casos
em que a pessoa se sente compelida a escapar desse espaço fechado, ou quando já
fez isso, varia em força de acordo com a gravidade da proibição social e o grau
de autocontrole. Na vida comum, chamamos essa agitação de vergonha apenas em
certos contextos e, acima de tudo, quando ela se reveste de um certo grau de
força, embora, em termos de sua estrutura, seja sempre, a despeito de suas
muitas nuanças e graus, o mesmo evento. Tal como todas as autorestrições,
encontra-se em forma menos regular, menos uniforme e menos geral em níveis mais
simples de desenvolvimento social. Tal como essas restrições, as tensões e
medos desse tipo emergem mais claramente a cada arranco do processo civilizador
e, finalmente, predominam sobre outras tensões e medos — principalmente, sobre
o medo físico a outras pessoas. Dominam mais na medida em que são pacificadas
áreas maiores e aumenta a importância, na modelação da pessoa, das limitações
mais comuns que sobem a primeiro plano na sociedade quando os representantes do
monopólio da força física passam a exercer regularmente seu controle como se
estivessem nos bastidores — na medida, numa palavra, em que progride a
civilização da conduta. Da mesma maneira que só podemos falar em “razão”
conjugando-a com progressos na racionalização e na formação de funções que
exigem espírito de previsão e moderação, só podemos falar em vergonha
conjugando-a com sua sociogênese, com os arrancos nos quais avança o patamar da
vergonha, ou pelo menos ele se move, e a estrutura e o padrão de
auto-limitações mudam em determinada direção, reproduzindo-se daí em diante da
mesma forma num período de tempo maior ou menor. A racionalização e o avanço
dos patamares da vergonha e da repugnância expressam uma diminuição do medo
físico direto a outras pessoas e uma consolidação das ansiedades interiores
automatizadas, das compulsões que o indivíduo agora exerce sobre si mesmo. Em
ambas, são igualmente manifestadas a capacidade de previsão maior e mais
diferenciada e a visão a longo prazo que se tornam necessárias a fim de que
grupos de pessoas cada vez maiores possam preservar sua existência social numa
sociedade crescentemente diferenciada. Não é difícil explicar como se ligam
essas mudanças psicológicas aparentemente tão diferentes. Ambas, tanto a
intensificação da vergonha como o aumento da racionalização, constituem
distintos aspectos da crescente cisão que ocorre na personalidade do indivíduo
com o aumento da divisão de funções, distintos aspectos da diferenciação sempre
maior entre pulsões e controle de pulsões, entre as funções do “id”, “ego” ou
“superego”. Quanto mais avança essa diferenciação na autoorientação do
indivíduo, mais claramente assume uma função dupla aquele setor das funções
controladoras que, em sentido amplo, é chamado de “ego” e, em sentido mais
estreito, “superego”. Por um lado, esse setor forma o centro a partir do qual a
pessoa regula suas relações com outros seres, vivos ou não, e, por outro, forma
o centro a partir da qual ela, em parte conscientemente e até certo ponto
automática e inconscientemente, controla sua “vida interior”, seus próprios
sentimentos e impulsos”
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