Colonialidade do Poder



Fichamento: Ciências Sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”.
                                                          Santiago Castro-Gómez
·         Introdução: “A modernidade é uma máquina geradora de alteridades que, em nome razão e do humanismo, exclui de seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas. A crise atual da modernidade é vista pela filosofia pós-moderna e os estudos culturais como a grande oportunidade histórica para a emergência dessa diferenças largamente reprimidas.”

“Abaixo mostrarei que o anunciado “fim” da modernidade implica certamente a crise de um dispositivo de poder que construía o “outro” mediante uma lógica binária que reprimia as diferenças.”
·         O projeto da governamentabilidade:
“O que queremos dizer quando falamos do “projeto da modernidade”? Em primeiro lugar, e de maneira geral, referimo-nos à tentativa fáustica de submeter a vida inteira ao controle absoluto do homem sob a direção segura do conhecimento.”
 “Gostaria de mostrar que quando falamos de modernidade como “projeto”, estamos referindo-nos também, e principalmente, à existência de uma instância central a partir da qual são dispensados e coordenados os mecanismos de controle sobre o mundo natural e social. Essa instância central é o Estado, que garante organização racional da vida humana. “Organização racional” significa, neste contexto, que os processos de desencantamento e desmagicalização do mundo aos quais se referem Weber e Blumemberg começam a ser regulamentados pela ação diretiva do Estado.”
“... O Estado é entendido como a esfera em que todos os interesses encontrados na sociedade podem chegar a uma “síntese”, isto é, como o locus capaz de formular metas coletivas, válidas para todos.”
 “... Isto significa que o Estado moderno não somente adquire monopólio da violência, mas que usa dela para “dirigir” racionalmente as atividades dos cidadãos, de acordo com critérios estabelecidos cientificamente de atemão.”
“Sem o concurso das ciências sociais, o Estado moderno não teria a capacidade de exercer controle sobre a vida das pessoas, definir metas coletivas de largo e curto prazos, nem de construir e atribuir aos cidadãos uma “identidade” cultural.”
“As taxonomias elaboradas pelas ciências não se limitavam, assim, à elaboração de um sistema abstrato de regras chamado “ciência”- como ideologicamente pensavam os pais fundadores da sociologia, mas tinha consequências práticas na medida em que eram capazes de legitimar as políticas reguladoras do Estado. A matriz prática que dará origem ao surgimento das ciências é a necessidade de “ajustar” a vida dos homens ao sistema de produção.”
“... As Ciências Sociais ensinam quais são as “leis” que governam a economia, a sociedade, a política e a história. O Estado, por sua vez, define suas políticas governamentais a partir desta normatividade cientificamente legitimada.”
“Ao falar de “invenção” não nos referimos somente ao modo como um certo grupo de pessoas se representa mentalmente as outras, mas nos referimos aos dispositivos de saber/poder que servem de ponto de partida para a construção dessas representações.”
“González Stephan identifica três praticas disciplinares que contribuíram para forjar os cidadãos latino-americanos do século XIX: as constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas do idioma.”
“... O que se busca é introjetar uma disciplina na mente e no corpo que capacite a pessoa para ser “útil à pátria”.”
“González Stephan, a invenção da cidadania e a invenção do outro, se encontram geneticamente relacionados. Criar a identidade do cidadão moderno na América Latina implicava gerar uma contraluz a partir da qual essa identidade pudesse ser medida e afirmada como tal. A construção do imaginário da “civilização” exigia necessariamente a produção de sua contraparte: o imaginário da “barbárie”.”
·          A colonialidade do poder ou a “outra face” do projeto da modernidade:
“Uma das contribuições mais importantes das teorias pós-coloniais à atual reestruturação das ciências sociais é haver sinalizado que o surgimento dos Estados nacionais na Europa e na América durante os séculos XVII a XIX não é um processo autônomo, mas possui uma contrapartida estrutural: a consolidação do colonialismo europeu no além-mar. A persistente negação deste vínculo entre modernidade e colonialismo por parte das ciências sociais tem sido, na realidade, um dos sinais mais claros de sua limitação conceitual.”
“... as ciências sociais projetaram uma ideia de uma Europa ascética e autogerada, formada historicamente sem contato algum com outras culturas.”
“As teorias pós-coloniais demonstraram, no entanto, que qualquer narrativa da modernidade que não leve em conta o impacto da experiência colonial na formação das relações propriamente modernas de poder é não apenas incompleto, mas também ideológico. Pois foi precisamente a partir do colonialismo que se gerou esse tipo de poder disciplinar que, segundo Foucault, caracteriza as sociedades e instituições modernas. Se, como vimos na seção anterior o Estado-nação opera como uma maquinaria geradora de “outreridades” que devem ser disciplinadas, isto se deve a que o surgimento dos Estados modernos se dá no âmbito do que Walter Mignolo chamou de “sistema-mundo moderno-colonial”. De acordo com teóricos como Mignolo, Dussel e Wallerstein, o Estado moderno não deve ser visto como uma unidade abstrata, separada do sistema de relações mundiais que se configuram a partir de 1492, e sim como uma função no interior desse sistema internacional de poder.”
 “Surge então a pergunta: qual é o dispositivo de poder que gera o sistema-mundo moderno/colonial e que é reproduzido estruturalmente no interior de cada um dos Estados nacionais? Uma possível resposta pode ser encontrada no conceito “colonialidade do pode” sugerido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano. Na opinião de Quijano, a espoliação colonial é legitimada por um imaginário que estabelece diferenças incomensuráveis entre colonizador e o colonizado. As noções de “raça” e “cultura” operam aqui como um dispositivo taxonômico que gera identidades opostas. O colonizado aparece assim como o ”outro da razão” o que justifica um exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador. A maldade, a barbárie e a incontinência são marcas “identitárias” do colonizado, enquanto que a bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador. Ambas as identidades se encontram em relação de exterioridade e se excluem mutuamente. A comunicação entre elas não pode dar – se no âmbito da cultura – pois seus códigos são impenetráveis – mas no âmbito da Realpolitik ditada pelo poder colonial. Uma política “justa” será aquela que, mediante a implementação de mecanismos jurídicos e disciplinares, tente civilizar o colonizado através de sua completa ocidentalização.”
“O conceito da “colonialidade do poder” amplia e corrige o conceito foucaultiano de “poder disciplinar” ao mostrar que os dispositivos pan-óticos erigidos pelo Estado moderno inscrevem – se numa estrutura mais ampla, de caráter mundial, configurada pela relação colonial entre centros e periferias devido à expansão europeia. Deste ponto de vista podemos dizer o seguinte: a modernidade é um “projeto” na medida em que seus dispositivos disciplinares se vinculam a uma dupla governamentabilidade jurídica. De um lado, a exercida para dentro pelos Estados nacionais, em sua tentativa de criar identidades homogêneas por meio de políticas de subjetivação; por outro lado, a governamentabilidade exercida para fora pelas potências hegemônicas do sistema – mundo moderno/colonialidade, em sua tentativa de assegurar o fluxo de matérias-primas da periferia em direção ao centro. Ambos os processos formam parte de uma única dinâmica estrutural.”
“Nossa tese é a de que as Ciências Sociais se constituem nesse espaço de poder moderno/colonial e nos conhecimentos ideológicos gerados por ele. Desse ponto de vista, as ciências sociais não efetuaram jamais uma “ruptura epistemológica”. [...] Não é difícil ver como o aparelho conceitual com o qual nascem as ciências sociais nos séculos XVII e XVIII se sustenta por um imaginário colonial de caráter ideológico. Conceitos binários tais como barbárie e civilização, tradição e modernidade, comunidade e sociedade, mito e ciência, infância e maturidade, solidariedade orgânica e solidariedade mecânica, pobreza e desenvolvimento, entre tantos outros permearam completamente os modelos analíticos das ciências sociais. [...] As ciências sociais funcionam estruturalmente como aparelho ideológico que, das portas para dentro, legitimava a exclusão e o disciplinamento daquelas pessoas que não se ajustavam aos perfis de subjetividade de que necessitava o Estado para implementar suas políticas de modernização; das portas para fora, por outro lado, as ciências sociais legitimavam a divisão internacional do trabalho e a desigualdade dos termos de troca e de comércio entre o centro e a periferia, ou seja, os grandes benefícios sociais e econômicos que as potências europeias obtinham do domínio sobre suas colônias. A produção de alteridade ara dentro e a produção de alteridade para fora formavam parte de um mesmo dispositivo de poder. A colonialidade do poder e a colonialidade do saber se localizadas numa mesma matriz genética.”

·         Do poder disciplinar ao poder libidinoso:
“Conceituamos a modernidade como uma série de práticas orientadas ao controle racional da vida humana, entre as quais figuram a institucionalização das ciências sociais, a organização capitalista da economia, a expansão colonial da Europa e, acima de tudo, a configuração jurídico-territorial dos estados nacionais. Também vimos que a modernidade é um “projeto” porque esse controle racional sobre a vida humana é exercido para dentro e para fora partindo de uma instância central, que é o Estado-nação. Nesta ordem de idéias vem então a pergunta: a que nos referimos quando falamos do final do projeto da modernidade? Poderíamos começar a responder da seguinte forma: a modernidade deixa de ser operativa como “projeto” na medida em que o social começa a ser configurado por instâncias que escapam ao controle do Estado nacional. O dito de outra forma: o projeto da modernidade chega a seu “fim” quando o Estado nacional perde a capacidade de organizar a vida social e material das pessoas. É, então, quando podemos falar propriamente da globalização.’’
“Deste ponto de vista, sustento a tese de que a globalização não é um “projeto”, porque a governamentabilidade não necessita já de um “ponto arquimediano”, ou seja, de uma instância central que regule os mecanismos de controle social.”
“O poder libidinoso da pós-modernidade pretende modelar a totalidade da psicologia dos indivíduos, de tal maneira que cada qual possa construir reflexivamente sua própria subjetividade sem necessidade de opor-se ao sistema. [...] Mais que reprimir as diferenças, como fazia o poder disciplinar da modernidade, o poder libidinoso da pós-modernidade as estimula e as produz.”
“Considero que o grande desafio para as ciências sociais consiste em aprender a nomear a totalidade sem cair no essencialismo e no universalismo dos metarrelatos. Isto conduz à difícil tarefa de repensar a tradição da teoria crítica (aquela de Lukács, Bloch, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Sartre e Althusser) à luz da teorização pós-moderna, mas, ao mesmo tempo, de repensar esta última à luz da primeira. Não se trata, assim, de comprar novos odres e descartar os velhos, nem de colocar o vinho novo em barris velhos; trata-se, isso sim, de reconstruir os velhos barris para que possam conter o novo vinho. Este “trabalho teórico”, como o denominou Althusser, já foi iniciado em ambos os lados do Atlântico, e de diferentes perspectivas. Refiro-me aos trabalhos de Antonio Negri, Michael Hardt, Fredric Jameson, Slavoj Zizek, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Edward Said, Gayatri Spivak, Ulrich Beck, Boaventura de Souza Santos e Arturo Escobar, entre muitos outros.
“A tarefa de uma teoria crítica da sociedade é, então, tornar visíveis os novos mecanismos de produção das diferenças em tempos de globalização. Para o caso latino-americano, o desafio maior reside numa “descolonização” das ciências sociais e da filosofia.”

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