RECEBE-ME, DOA-ME, DOANDO-ME TU ME TERÁS DE NOVO: MARCEL MAUSS E O ENSAIO SOBRE A DÁDIVA.

 


 

RESENHA:

MAUSS. M. Ensaio sobre a dádiva- forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Sociologia e Antropologia. Ubu Editora, 2017.

 

Sindy Gabrielly Holanda Oliveira[1]

 

Marcel Mauss (1872-1950) nasceu em família de judeus em Épinal, sociólogo e antropólogo. Junto a seu tio Durkheim fazia parte da direção da revista L’ Année Sociologique desde sua fundação em 1898. Considerado um expoente da Antropologia Francesa compondo a primeira geração de antropólogos franceses dos anos 30. Mauss ao contrário de seus pares antropólogos não obteve reconhecimento por monografias ou trabalho etnográficos, pois nunca fez trabalho de campo, porém por sua atenção as questões teóricas centrais em seus ensaios (ERICKSON, 2015).

            Lecionou no Instituto de Etnologia da Universidade de Paris, na Sorbonne, na École Pratique des Hautes Études e em 1931 obteve uma cátedra no Collége de France[2] (CASTRO, 2016). Marcel Mauss foi professor de antropólogos que deram continuidade a antropologia estrutural francesa, como Lévi-Strauss, Georges Dumézil e Louis Dumont. O trabalho de Mauss condensasse basicamente em duas obras Sociologia e Antropologia e Ensaios de sociologia compostos por uma diversidade de ensaios descontínuos, além de ter colaborado com a famosa obra de Durkheim, O suicídio. O autor influenciou uma série de antropólogos, sociólogos e pesquisadores de outras áreas.[3] A antropologia e sociologia pretendida por M. Mauss é descrita como:

         Une sociologie qui est à la fois une histoire des idées, des méthodes et des théories générales, une analyse des systèmes sociaux et une réflexion sur les origines de la raison à partir des notions de classe, de genre, de temps ou encore d’espace. Un autre phénomène fait son entrée dans cette sociologie générale, et cela à partir de la théorie de l’État : le politique. (BERT, apud MAUSS, 2012)

 

O Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1923-24) é considerada a obra mais relevante de Mauss. Este ensaio aborda diversos grupos sociais e regiões. O método escolhido por Mauss é o comparativo, delimitando as áreas de estudo da temática; Polinésia, Melanésia, Noroeste americano e alguns grandes direitos. Afirmando o autor que não se trata de uma comparação em que tudo se mistura e perde-se as características particulares dos grupos, seu objetivo é descrever esses sistemas em sua integridade e comparar a medida do possível.

O autor a inicia a obra afirmando que na sociedade escandinava assim como em muitas outras as trocas se fazem sob forma de presentes, em teoria voluntários, mas na prática dados e retribuídos obrigatoriamente (p.193). A dádiva para Mauss é um fenômeno universal. Dessa forma a pergunta que orienta o rumo da discussão de Mauss é: Qual a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente recebido seja obrigatoriamente? Que força existe na coisa dada que faz que o donatário a retribua? (p.194).

Para Mauss as trocas são obrigatórias, porém vividas sob o signo da espontaneidade, essas trocas não incluem somente presentes bens, riquezas, ou materiais úteis elas são antes de tudo amabilidades: banquetes, ritos, festas, mulheres, danças e outros. Pois estas são antes de tudo relação entre aqueles envolvidos no dar-receber-retribuir, toda representação presente na troca é relação. O argumento central desse texto é de as trocas, as dádivas produzem uma sociabilidade, esta produz alianças matrimoniais, políticas, religiosas, econômicas, jurídicas e diplomáticas. Mauss atribui às trocas, às dádivas uma dimensão política à medida que afirma que estas criam ou favorecem sociabilidades, uma coesão social[4].

Estas trocas, afirma Mauss, não ocorrem entre indivíduos, porém entre coletividades, que se obrigam mutuamente, trocam e contratam (p.195) Mauss chama essas trocas de sistema de prestações totais que podem ser do tipo prestações totais ou do tipo prestações totais agonísticas (também referida como Potlatch, que significa essencialmente nutrir ou consumir.) esta última refere-se a prestações que implicam um maior desenvolvimento de competição e hierarquia social entre os envolvidos, uma maior institucionalização da competitividade, a primeira que me referi, as prestações totais assumiriam uma forma mais elementar da trocas, sem tanta competição, está seria a forma mais antiga da dádiva.[5]

 

A obra é dividida em três capítulos, o primeiro trata da Polinésia, o segundo das Ilhas Andaman, Melanésia e Noroeste Americano[6] e o terceiro trata das sociedades antigas (Índia, Roma e povos Germânicos). Na teoria nativa maori, povo da região da Polinésia a pergunta de Mauss: Que força há na coisa dada que faz com que o donatário retribua?  é “respondida”: a coisa dada não é inerte, ela tem um espirito (hau) trata-se do espírito do doador que é transmito ao artigo oferecido (taonga) e deseja voltar ao seu lar de origem. Dessa forma tudo entra em circulação como se houvesse uma troca constante de material espiritual (p.208)

Nas sociedades da melanésia o Potlatch desenvolveu-se ou conservou-se melhor que as da Polinésia identificando uma rivalidade e competitividade na qual homens e mulheres buscam superar-se uns aos outros em generosidade, pois isso corresponde a um status na hierarquia social, o generoso é superior. Outro fato relevante apontado por Mauss é que no sistema de prestações totais, a dádiva não se resume apenas ao ato de dar, recusar dar ou recusar retribuir, negligenciar convidar equivale a declarar uma guerra, pois assim também se recusa a comunhão e a aliança (p.209), recusar-se receber o Potlatch é manifestar que se teme ter de retribuir, é confessar-se vencido de antemão (p.258) A obrigação de retribuir também é essencial, caso não haja equivalência na retribuição a sanção é a  escravidão por dívida, perde-se a face para sempre (p.260). A iniciativa da oferta, a qualidade e a quantidade do que é trocado importa para o estabelecimento de uma superioridade moral e política.

O segundo capítulo do livro ao abordar o mundo melanésio aponta para as ilhas Trobriandesas e o fenômeno estudado por Malinowski o Kula. Que desmistifica toda a ideia presente nas literaturas de que uma economia primitiva é utilitarista simples e preconiza somente a sobrevivência: O Kula não é uma modalidade sub-reptícia e precária de troca. Muito pelo contrario está enraizado em mitos, sustentados pelas leis da tradição e cingido por rituais mágicos (MALINOWSKI p.153). Este também não se realiza sob a pressão de quaisquer necessidades, visto que seu objetivo principal é a permuta de artigos que não tem nenhuma utilidade prática[7] (MALINOWSKI p.153).

Mauss afirma que o Kula é uma forma de prestação total do tipo agonístico, Potlatch pois a competição em generosidade e a sociabilidade[8] criada pelo Kula, pela dádiva é nítida. Como afirma Malinowski [...] há sempre intensa competição no sentido de ser o doador mais generoso, o indivíduo que recebe menos que dá não esconde seu aborrecimento, mas gaba-se de sua própria generosidade e a contrasta com a avareza do parceiro; o outro se ressente com isso  e, assim, abriga está pronta (p.168). E é através da troca, por conta dessa competitividade da troca que suscita sentimentos como inveja e superioridade que surgem oportunidades de distinção social. (p.647)

Mauss chega assim à conclusão de o Kula é o mais solene de um vasto sistema de prestações e de contraprestações, e que esta instituição engloba a totalidade da vida econômica e civil dos Trobriandeses. Assim também interpretou Malinowski ao afirmar que toda a cultura Trobriandesa era permeada pelo Kula e o Kula permeado pela cultura. Essa instituição para Mauss, assim como outras, representa bem o que o autor denomina de fato social total, isto é, eles demonstram a totalidade da sociedade e de suas instituições. Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo religiosos, jurídicos, econômicos, morfológicos, estéticos e etc. (p.324) Portanto não se trata de instituições fragmentadas, estas são um todo, sistemas sociais inteiros cujo funcionamento o autor busca descrever. (p.326)

No terceiro capítulo intitulado Sobrevivência desses princípios nos direitos e nas economias antigos[9] Mauss com sua teoria da universalidade da dádiva afirma que a Índia era um país onde o Potlatch estava presente, através de algumas epopeias da Índia Mauss identifica o caráter da dádiva de sua espontaneidade/obrigatoriedade, uma das epopeias citadas que reafirma a teoria do autor de que há uma virtude que força as dádivas a circularem e serem retribuídas (p.262):

Recebe-me (donatário)

Doa-me (doador)

Doando-me tu me terás de novo (p.295)

O autor elenca outras crenças dessa sociedade que demonstram também um outro caráter da dádiva, o perigo. Como por exemplo a crença de que a natureza do alimento é ser partilhado e que não dividi-lo com outrem é matar sua essência, destruindo o para si e para os outros. Afirma Mauss que essa é a interpretação materialista e idealista ao mesmo tempo idealista que o bramanismo deu da caridade e da hospitalidade (p.296).

A caução na sociedade germânica é outro exemplo citado pelo autor, pois em todo contrato de venda, empréstimo, deposito e outros implica na constituição da caução, na qual se dá ao contratante, que serão devolvidos na ocasião do pagamento da coisa fornecida. A caução é uma virtude em si mesma, obrigatória e um vínculo.

            Ao longo de toda a obra M. Mauss traça diversas comparações, ou sugestões de possíveis comparações, demonstrando o caráter de seu método antropológico, ao comparar alguns Potlatch Mauss afirma:

 O próprio Potlatch, tão típico como fato, e ao mesmo tempo tão característicos dessas tribos, não é outra coisa senão o sistema das dádivas trocadas. Diferencia-se apenas pela violência, pelo exagero, pelos antagonismos que suscita, de um lado, e, de outro, por uma certa pobreza de conceitos jurídicos, por uma estrutura mais simples, mais bruta que a Melanésia, sobretudo das duas nações do norte, Tlingit e Haida. O caráter coletivo do contrato aparece melhor nelas do que na Melanésia e Polinésia. No fundo, essas sociedades estão mais próximas, apesar das aparências, daquilo que chamamos as prestações totais simples. Assim, os conceitos jurídicos e econômicos têm menos clareza e precisão consciente. Na prática, porém, os princípios são formais e suficientemente claros. Duas noções, no entanto, são bem mais evidenciadas que no Potlatch melanésio ou que nas instituições mais evoluídas ou mais decompostas da Polinésia: é a noção de crédito, de termo, e também de honra. (MAUSS p.245)

 

Os estudos sobre a Dádiva não ficaram somente nas ditas sociedades arcaicas, os estudos de M. Mauss influencio uma série de trabalhos contemporâneos em áreas modernas urbanas como é o caso de Dádiva e Emoção: obrigatoriedade e espontaneidade nas trocas materiais (ano) de Maria Claudia Coelho que empreende um estudo sobre as regras do presentear junto a segmentos de camadas médias do Rio de Janeiro. Através de entrevistas em profundidade a autora discute o modo como a tensão entre obrigatoriedade espontaneidade aparece nas dádivas. Demonstrando que os indivíduos recorrem as dádivas materiais para elaborar suas identidades, expressar/suscitar sentimentos, como meios de comunicação e renovação de sentimentos amorosos. Alertando para uma recusa dos indivíduos para com a obrigatoriedade de presentear em datas comemorativas, como uma tentativa de recuperar a dimensão espontânea da dádiva, tão essencial para a sociabilidade criada pela mesma. Dessa forma percebemos que M. Mauss até hoje é um autor de muita relevância e utilização na ciência antropológica.

 

REFERÊNCIAS

CASTRO, Celso. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição: Boas, Malinowski, Lévi-Strauss e outros/ Celso Castro. p.92-82 - 1.ed.- Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

COELHO, Maria Claudia. Dádiva e emoção: obrigatoriedade e espontaneidade nas trocas materiais. RBSE, vol.2, n.6, p.335-50, João Pessoa, GREM, dez 2003.

ERICKSON, Paul A. LIAM D. Murphy. História da Teoria Antropológica; tradução de Marcus Penchel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

LANNA, Marcos P.D. Marcel Mauss. p.78-61 in ROCHA, Everardo. FRID, Mariana. (org.) Os antropólogos. Rio de Janeiro: ed. PUCRS-Vozes, 2016.

LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva, Revista de sociologia e política,14, p. 173-94, Curitiba, jun 2000.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental: Um relato do empreendimento da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia.

MAUSS, Marcel. “Un inédit: la leçon inaugurale de Marcel Mauss au Collège de France”. Terrain [on line], 59, set./2012 [Disponível em http://terrain.revues.org/15006]



[1] Graduada em Ciências Sociais- Licenciatura pela UFC, mestranda em Antropologia Social PPGAS- UFRGS.

[2] Porém como afirma Celso Castro, foi afastado da cátedra por conta da ocupação nazista na França, por ser um militante socialista e ter origem judaica.

[3] Como afirma Lanna (2016) a antropologia do corpo de M. Mauss influenciou M. Foucault cujo conceito de tecnologia do corpo deriva do de técnicas do corpo. Outra influência de Mauss apontada é no conceito de habitus de P. Bourdieu.

[4] Mauss considerava-se um cientista positivista, é nítida sua influência de Durkheim tanto ao sugerir que a dádiva gera coesão social como também pelo seu conceito de fato social total, apesar de guardar diferenças consideráveis de seu tio, por exemplo o fato de dar a dimensão psicológica importância nos estudos sociais diferente de Durkheim que considerava que o fato social é sempre coercivo, geral e externo ao indivíduo, não incluindo assim a dimensão psicológica.

[5] Percebe-se que Mauss não livrou-se totalmente de algumas influências evolucionistas, a medida que algumas ideias nos lembra essa corrente, como por exemplo quando Mauss sugere que as prestações totais agonísticas derivam das prestações totais simples, essa última uma espécie mais antiga da dádiva.

[6] Apesar de não ter feito trabalho de campo, ao falar dos povos do Noroeste americano, o autor se utiliza do trabalho etnográfico de Boas a respeito dos Potlatch desses povos.

[7] Os artigos permutados no Kula, os vaygu’a são dois: os braceletes de concha (mwali) e os colares (soulava).

[8] O Kula é intertribal, fazendo com que a tribo saia de suas fronteiras gerando alianças entre outras tribos. Além do que para os nativos o Kula representa um dos interesses mais vitais da existência. Percebemos assim a sociabilidade gerada pelo Kula.

[9] Novamente percebemos influência do evolucionismo cultural à medida que o conceito de sobrevivência de traços culturais tidos como primitivos é desenvolvido por James Frazer.

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